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ARTIGOS: Evolução




Doutor Darwin, O que Eu Tenho?

O pensamento darwiniano tem transformado a ciência médica, nos trazendo novas concepções sobre doenças, infecções e até mesmo sobre o envelhecimento.

As propostas de Charles Darwin em sua obra “A Origem das Espécies” tem percorrido uma longa jornada até a atualidade, sendo aplicada a novos campos, que vão da agricultura à sociologia. O desenvolvimento científico no século XX nos forneceu esclarecimentos de aspectos essenciais neste processo, de modo que hoje, 150 anos depois da publicação de seu livro, a teoria da seleção natural continua tão atual como era no momento de sua publicação.

Assim, o darwinismo em nossa história recente é mais que uma grande tradição científica. É também uma das mais importantes referências de quem vive e viveu no mundo moderno.

Como qualquer ciência bem sucedida, teve suas consequências materiais. Grande parte do sucesso da agricultura a partir da II Guerra Mundial deve-se à aplicação de princípios darwinianos em sua prática. Recentemente, com mais audácia, darwinistas tem voltado a atenção para as ciências médicas, apresentando por vezes propostas radicais de mudança da prática clínica, sobretudo no que se diz das doenças infecciosas. Sob esta “nova” ótica, até mesmo o envelhecimento passa a ser encarado de outra forma, mas esta transformação (ainda em andamento) exige que entre os conhecimentos biológicos assimilados pela medicina, inclua-se a biologia evolucionista.

A experiência negativa da eugenia nos marcou com um forte receio das aplicações darwinistas no campo médico, levantando uma série de questionamentos éticos e morais, mas a corrente evolucionista do pensamento médico, agora mais madura, não parece ter desistido.

Voltando um pouco para a agricultura, onde os conceitos darwinianos já estão bem assentados. A proposta evolucionista nos aponta a competição por recursos como um dos principais limitadores do crescimento populacional. Outro fator importante para esta contenção é a predação. Nestes dois princípios, já temos o problema e a solução de grande parte de nossos problemas agrícolas. Se pensarmos em nossos modelos gigantes de monoculturas, talvez tenhamos exposto nosso melhor exemplo de abundância de recursos. É difícil conceber um cenário mais propício para a propagação do que chamamos “praga” (os organismos que consomem essa produção para a própria sobrevivência e/ou manutenção da espécie). Inúmeros foram os recursos químicos aplicados na tentativa de reduzir ou eliminar este empecilho. Mas tendo, neste ponto, a compreensão de que as pressões do meio selecionam as populações, o que conseguimos foram pragas mais resistentes com o passar dos anos. Pior do que não resolver um problema, nós o ampliamos. A proposta de solução darwiniana para este caso poderia se aplicar de duas formas, que parecem estar se difundindo em nossos modos de produção. A primeira seria a limitação do recurso. Trocamos, assim, as monoculturas por sistemas agroflorestais, onde os recursos tornam-se mais variados, permitindo ao ambiente manter algum controle sobre si próprio, a partir da presença de um grupo mais diverso de organismos (atraídos pela variedade do recurso) que poderiam competir entre si ou predarem-se, mantendo um maior equilíbrio do meio. A segunda seria aumentar a predação, introduzindo no ambiente um organismo controlador da praga. Temos aí o que chamamos hoje de Controle Biológico. Se, por um lado, a aplicação química selecionará aos poucos os organismos mais resistentes (portanto, mais adaptados às novas condições), por outro a presença de um predador natural insere neste sistema um ou mais organismos especializados no consumo, destruição ou parasitismo do organismo danoso (a praga).

Entendida esta primeira experiência da ciência contemporânea, podemos trazer o seguinte questionamento: Por que seria diferente com nossos corpos? Somos, cada um de nós, e ainda mais quando em sociedade, modelos de gigantes monoculturas esperando a oportunidade de que surjam pragas (no nosso caso, os organismos infectantes) que se estabeleça confortavelmente em nossos campos. E o modo como tradicionalmente as combatemos é com controle químico. Aí surge o grande conflito médico-darwinista: Estaríamos aprimorando nossa saúde ou selecionando nossas melhores pragas? Este talvez seja o questionamento gerador de toda esta problemática, mas já está longe de ser o único. Para trabalhar este assunto, nos apoiaremos principalmente na obra “O Espectro de Darwin”, de Michael Rose, publicado originalmente em 1998 e, no Brasil, no ano seguinte. Iniciaremos com algumas abordagens de compreensão dos problemas médicos.

O cerne da medicina darwiniana é que os problemas de saúde de uma população são determinados por sua história evolutiva (é assim que ocorre, em geral, na natureza, com o desenvolvimento coespecífico dos diferentes grupos de seres vivos). Entende-se que nossos problemas de saúde não são inerentes à organização básica da vida nos distúrbios específicos, mas sim um produto de nossas interações e transformações ao longo do tempo. Cada conquista evolutiva, dos pulmões das baleias às asas dos morcegos, traz com ela uma margem de vulnerabilidades particulares. Isso pode ocorrer de duas formas. Muitas adaptações apresentam com elas algumas “sementes de desorganização”. A evolução ocorrerá, sob o ponto de vista darwiniano, quando um conjunto de caracteres apresentar um diferencial significativo a uma pressão ambiental. Se consideramos, no entanto, que estas transformações ocorrem em escala microscópicas e se acumulam (e muitas vezes se relacionam), a seleção poderá trazer embutidas algumas dificuldades em suas adequações. É o caso, por exemplo, das doenças cardiovasculares e do câncer. Os insetos possuem o sistema circulatório aberto. Isso permite que a interrupção de uma pequena rota não cause fortes distúrbios ao sistema, que poderá utilizar com tranquilidade as rotas paralelas, tornando a deposição de gordura um problema pouco importante. Ainda, nos adultos ocorre pouca divisão celular (a maior parte restrita às gônadas). Por vezes chegam a ter tumores, mas em insetos geneticamente normais são sempre benignos.

Isso não quer dizer, todavia, que as conquistas dos mamíferos sejam ruins. Nosso sistema circulatório fechado nos confere uma respiração bastante eficiente, além de um sistema imunológico proliferativo. Ainda, sem uma grande taxa de divisão celular, viveríamos menos e em condições de saúde bastante precárias. Essas características, no entanto, aparecem associadas às duas patologias que são hoje a principal causa de mortes em países industrializados.

O outro modo como aparecem as características negativas “embutidas” é através da abertura de portas para novas infecções. O trato respiratório dos vertebrados terrestres e o aparelho reprodutor dos animais que realizam fecundação interna são essenciais para seus modos de vida. Mas estas estruturas são, por natureza, bastante convidativas às infecções. A umidade destes tecidos é fundamental para a troca gasosa e para a transferência dos gametas, mas, sobretudo levando em conta o contato com o meio circundante ou somados a condições estáveis de temperatura, são um ambiente muito propício ao estabelecimento e proliferação de vírus e bactérias.

Para a medicina moderna, o engasgamento é a obstrução acidental da via respiratória. Para a medicina darwiniana, em nossa história evolutiva temos ancestrais aquáticos, que se alimentavam e absorviam o oxigênio da apenas da água e não precisavam de vias distintas para sua sobrevivência. Isso culminou em canais que, no ser humano (e muitos outros animais, principalmente vertebrados terrestres), encontram-se na faringe, tornando possível o acidente do engasgamento.

Com um olhar um pouco mais fatalista, podemos entender o processo evolutivo como uma inevitável condenação a ciclos específicos de doença e morte. Mas de uma perspectiva darwiniana, até mesmo o envelhecimento, talvez o maior pesadelo médico da atualidade, tem sua função no processo de continuidade da espécie.

Para compreender isso, devemos entender que nem todo ser vivo envelhece. É provável que as bactérias nunca o façam, bem como alguns tipos de gramíneas, arbustos e anêmonas marinhas parecem não envelhecer. O envelhecimento, então, não é característica intrínseca da vida, seja em nível bioquímico, molecular ou celular. A ocorrência do envelhecimento (aumento da taxa de mortalidade com o passar do tempo de vida) deve ser, portanto, adaptativa. Mas como?

Primeiramente, sugere-se uma comparação. Todos os organismos capazes de “viver para sempre” (do ponto de vista do envelhecimento, vale destacar) apresentam algum tipo de reprodução vegetativa. Já os organismos sujeitos ao envelhecimento, como insetos e mamíferos, não tem nenhuma forma de reprodução vegetativa. Parece haver algo na necessidade de praticar sexo para a reprodução que leva ao envelhecimento. Para entendermos essa questão, podemos fazer uso de dois exemplos de doenças genéticas bastante distintas: uma é a Progéria (doença do envelhecimento precoce), que afeta as crianças e impede por completo a reprodução, eliminando a doença em uma geração (não é transmitida à prole, pois não há prole); a outra é a Coréia de Huntington, igualmente fatal e causada também por um único gene dominante, mas que tem sua expressão por volta dos 30 anos de idade, quando o indivíduo já teve muitas oportunidades de reprodução. O gene da Coréia de Huntington é bastante comum em algumas regiões, mas não é facilmente contido, por ser transmissível a outras gerações – a força da seleção natural contra um gene fatal é menor quando ele se expressa depois do início do período reprodutivo. Numa situação extrema, um gene fatal que se expressasse aos 90 anos de idade no homem não teria seleção natural nenhuma atuando sobre ele, pois não há mais reprodução após esta idade.

Ora, se reconhecemos na vida um esforço contínuo em “manter-se viva” e entendemos as adaptações evolutivas como tentativas de sobrevivência, é natural que a reprodução seja entendida como cume do esforço evolutivo em manter nossa saúde. Assim, teremos um “empenho” da seleção muito forte até por volta de nossos 12 anos, mas muito fraco aos 80. Não há outra coisa no mundo que nos dê melhores condições de ter um corpo que funciona que a Seleção Natural, posto que nos força às adaptações ótimas.

Neste contexto, o combate ao envelhecimento seria, de certa forma, um aprimoramento da saúde. O problema é que a medicina entende este combate, hoje, como um prolongamento da vida adulta, enquanto a “medicina darwiniana”, se assim a podemos chamar, enxerga funcionalidade apenas no atraso da maturidade sexual. Temos prolongado nosso tempo de vida, mas não é tão notável nosso ganho em condições de vida. Ao passo que vivemos mais, nos tornamos mais doentes (e foi justamente neste processo que descobrimos uma série de doenças degenerativas). O pensamento evolutivo nos alerta para um fator importante: se a seleção natural é eficiente ao aprimorar nossa saúde até o ponto de maturidade sexual, é antes desse momento que devemos atuar no retardamento do envelhecimento se visamos saúde, de fato, e não apenas prolongamento da vida.

Os exemplos de como o pensar evolutivo transtorna a medicina contemporânea são muitos, mas não caberiam num artigo tão pequeno. Neste ponto, obrigo-me a recomendar a leitura da obra “O espectro de Darwin” a todos os curiosos. Poderíamos passar parágrafos e mais parágrafos discutindo situações contraditórias onde doenças são selecionadas positivamente por se somarem a efeitos que favorecem a reprodução de populações. Muitos deles bastante polêmicos, como nos casos dos machos que vivem menos e possuem uma saúde fragilizada por conta do investimento energético em reprodução (que leva algumas espécies a desenvolver parasitoses, perder pêlos, desenvolver feridas na pele e ou até à morte), onde um grupo afirmará que para reduzir os efeitos maléficos da testosterona e restaurar a saúde do animal, bastaria remover os testículos – enquanto o outro questiona qual seria a utilidade direta deste indivíduo na continuidade da espécie. Do mesmo como o Darwin nos fez parar de pensar na evolução do indivíduo para contemplá-la ocorrendo em populações, a medicina darwiniana trabalha com o olhar sobre a saúde do grupo.

Se tivemos uma biologia domesticada pelas ciências médicas durante o século XIX, talvez seja nosso momento de “dar o troco”. No contexto do envelhecimento, mesmo passados 150 anos, as teorias de Darwin ainda nos parecem cheias de saúde, prontas para uma possível frutificação – e bastante longe de tornarem-se velhas.

André Luiz de Camargo Estevam – 4º ano de Ciências Biológicas







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