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ARTIGOS: Evolução




Mentes Humanas, Mentes Animais e a Comunidade Moral: O Darwinismo e a Questão (Zoo)Ética

Em novembro de 2002, em um desfile da grife Victoria Secret em Nova Iorque, a entrada da top model brasileira Gisele Bundchen foi perturbada por manifestantes da PETA (People for the Ethical Treatment of Animals – Pessoas Pelo Tratamento Ético de Animais), que invadiram a passarela com cartazes ofensivos. O motivo do desagrado dos militantes: Gisele era a mais nova garota propaganda da fabricante de peles Blackglama. Ao ser entrevistada posteriormente sobre o acontecimento, a modelo declarou-se tomada de completa surpresa e incapaz de entender o que ela teria feito de errado; afinal, “eu estava só fazendo meu trabalho”, disse Gisele.

O comércio de peles envolve a matança anual de milhares de animais, e em termos filosóficos podemos dizer que a indignação dos membros da PETA – assim como de tantas outras organizações semelhantes no mundo inteiro – diz respeito à noção de comunidade moral. Chamamos de comunidade moral o conjunto de seres/indivíduos que julgamos dignos de consideração moral. Quanto mais abrangente uma comunidade moral, maior a quantidade e diversidade daqueles cujos interesses devem ser respeitados. A história está repleta de genocídios, e aos olhos daqueles que os cometem os mesmos são plenamente justificáveis porque suas vítimas não estão incluidas em sua comunidade moral, não sendo, portanto, consideradas dignas de respeito, amor, compaixão. Assim, a noção de comunidade moral tem importância crucial em qualquer discussão ética relacionada aos tipos de relação e de exploração dos animais pelos humanos. Os animais devem ser incluídos em nossa comunidade moral? Em caso positivo, quais animais? Todos? E por que não as plantas? O que dizer dos embriões humanos? Que critérios devemos levar em conta quando tentamos demarcar uma linha e traçar um círculo dentro do qual sejam abrigados todos aqueles seres que participam de nossa comunidade moral? Sejam quais forem os critérios propostos ou adotados, nos dias de hoje pode-se afirmar que os principais pensadores da chamada ética animal dão grande importância às concepções advindas do darwinismo como norteadoras de posturas éticas em nossa relação com os (demais) animais. Por quê? Para entendermos isso, precisamos primeiramente ter uma noção do que é o darwinismo.

Quando se pensa em ‘darwinismo’, o mais comum é que venha à mente das pessoas a ideia de seleção natural, muitas vezes traduzida pela noção de ‘sobrevivência do mais apto’. A teoria evolutiva de Darwin, no entanto, é bem mais complexa e abrangente. Ernst Mayr, um dos responsáveis pela teoria sintética da evolução (que na primeira metade do século XX unificou o darwinismo e a genética mendelista, fornecendo uma explicação dos processos evolutivos que grosso modo é ainda hoje a concepção científica vigente) afirmava que Darwin apresentou ao mundo não uma, mas cinco teorias independentes: 1) a evolução como fato; 2) a origem comum (common descent) de todos os seres vivos; 3) o gradualismo do processo evolutivo; 4) a especiação populacional (ou multiplicação das espécies); e 5) a seleção natural. [poderíamos ainda acrescentar a teoria da seleção sexual]. Se levarmos em conta essa multiplicidade de teorias dentro do corpo conceitual do darwinismo, teremos um quadro bem mais complexo. Se a imagem ajudar, pense o darwinismo como um caleidoscópio; suas ideias, argumentos e conceitos seriam aqueles pequenos elementos que conferem diferentes arranjos de formas e cores, conforme o caleidoscópio é movimentado. Se você olha o mundo através do caleidoscópio darwinista, e a configuração que você agora vê é a teoria da seleção natural é provável que você esteja observando um mundo de competição acirrada pelos recursos naturais, competição essa que em não poucos casos chega a assumir a forma direta de uma ‘natureza sangrenta de dentes e garras’, com a constante eliminação dos indivíduos menos aptos e o êxito evolutivo dos mais bem aparelhados para a sobrevivência e a reprodução nas circunstâncias cambiantes de cada momento. Essa noção de ‘sobrevivência do mais apto’ – cunhada pelo filósofo Herbert Spencer, mas adotada por Darwin – foi historicamente usada por muitos grupos políticos para justificar práticas de exclusão e opressão social de diferentes grupos e etnias sob o argumento de que tais políticas obedeceriam a uma lei natural. Esse tipo de visão de mundo é até chamado de ‘darwinismo social’, embora Charles Darwin nunca tenha sido propositor de políticas discriminatórias (na verdade, Darwin era um indignado crítico do escravagismo), e esse pensamento político esteja muito mais ligado a Spencer do que a Darwin. Apesar disso, ainda hoje podemos encontrar no meio acadêmico muitas pessoas que, com base em um conhecimento superficial e equivocado do que vem a ser o darwinismo, tentam reduzir esse rico e abrangente sistema conceitual a nada mais que uma teoria científica criada para justificar políticas e atitudes geradoras e mantenedoras da desigualdade social. Embora essa seja uma leitura profundamente errônea do darwinismo, de fato se olharmos a realidade pelo caleidoscópio darwinista ao prisma da teoria da seleção natural, é possível vermos uma teoria cuja ênfase na competição e no triunfo do mais apto apresenta implicações que apontam para um estreitamento de nossa comunidade moral: só realmente importariam os indivíduos, grupos e espécies mais bem sucedidos em seus esforços de superar os rivais e conquistar o ambiente. (Obviamente, aqui nos deparamos com a dita falácia naturalista, i.e., a ideia de que o que é natural é sempre o certo, que descrever é igual a prescrever, mas não entremos nessa discussão filosófica). Agora, com esse mesmo caleidoscópio do darwinismo em mãos, gire-o, desfazendo o arranjo da imagem da seleção natural, e deixe outros elementos formarem uma nova configuração: a teoria da origem comum. Você verá se destacarem novas formas e novas cores. Olhe através desse caleidoscópio agora, e visualize a vida surgindo uma única vez no planeta, na forma de uma bactéria primitiva a borbulhar nos caldos orgânicos de águas lamacentas e quase ferventes, a ‘sopa primordial’. Imagine esse primeiro organismo se auto-replicando, reproduzindo-se, as águas do mundo sendo povoadas de seres microscópicos. A vida microscópica sofrendo mutações aleatórias, as mais favoráveis destas sendo ‘selecionadas’ pelas pressões ambientais, a vida se diversificando e, num processo de bilhões de anos, formas viventes as mais complexas e variadas conquistando o ambiente terrestre e os ares, criando novos nichos ecológicos, alterando a própria estrutura física do planeta. Todas essas formas descendentes daquele primeiro organismo ancestral, que foi gerando novos descendentes modificados, os quais também geraram proles mutantes, produzindo-se novas espécies, como o tronco de uma árvore gera novos ramos, que se bifurcam em galhos, e esses em mais galhos – a ‘árvore da vida’, como a apelidou Darwin. Se pensarmos que nessa visão todas as espécies existentes – caramujos e baleias, amendoeiras e jacarés, amebas e leões, águias e seres humanos – têm uma origem comum, ou seja, derivam de um mesmo ancestral único, somos remetidos a uma noção de parentesco universal. Algumas espécies são mais proximamente aparentadas entre si, mas em diferentes graus todos os seres vivos nutrem alguma relação de parentesco uns com os outros. Com um pouco de licença poética, poderíamos afirmar que o ser humano se encontra, assim, irmanado com todos os demais seres vivos em uma única e ‘grande família’, sendo os animais nossos parentes mais próximos, dentre eles os mamíferos, e entre estes, os primatas.

Quais são as implicações filosóficas e éticas dessa verdade científica, aqui traduzida com alguma liberdade literária? Em primeiro lugar, essa teoria darwiniana da origem comum entre todos os seres vivos nos faz ver que, em diferentes graus, as espécies mais aparentadas entre si devem partilhar de várias características em comum, já que derivam de um mesmo ancestral relativamente próximo. Por isso Mayr chama a teoria da origem comum de ‘primeira revolução darwiniana’ (a segunda seria a teoria da seleção natural), pois a tese da origem comum colocou em polvorosa a sociedade vitoriana, ao postular para os seres humanos uma proximidade maior dos macacos do que dos anjos. Esse destronamento científico e filosófico do homem significa também que a tão aclamada mente humana é, na concepção darwinista, apenas mais um fenômeno biológico, mais uma característica adaptativa de uma espécie, como o são o fototropismo dos girassóis, o gregarismo dos leões ou os formidáveis instintos das vespas caçadoras.

Podemos observar, assim, que em termos históricos as pessoas sempre recorreram às diferenças entre os indivíduos e grupos (por exemplo, à teoria darwiniana da seleção natural) para justificar a redução da comunidade moral, e sempre enfatizaram as semelhanças entre os seres (por exemplo, a teoria darwiniana da origem comum) para defender a ampliação dessa comunidade moral. Em seu livro The Descent of Man (A Origem do Homem), publicado em 1871, Darwin afirmou que a diferença entre a mente animal e a mente humana “é uma diferença de grau, e não de tipo”. Ou seja, a mente é um fenômeno biológico que surgiu no mundo natural em algum ramo animal da árvore da vida, muito antes de terem surgido os humanos. Darwin atribuía sofisticadas faculdades mentais a inúmeras espécies, e atualmente, após não poucas décadas de negação da inteligência animal pela comunidade científica, os estudos do comportamento animal em estado selvagem ou cativo vêm demonstrando de forma cada vez mais impressionante e contundente do que são capazes nossos parentes animais - próximos ou não. Chimpanzés utilizam e até mesmo confeccionam ferramentas simples para alcançar cupins dentro de um termiteiro, para obter água retida no buraco de uma árvore, para quebrar castanhas. A estrutura social desses primatas é extremamente sofisticada, envolvendo um jogo de ‘xadrez social’ que inclui alianças de poder e reciprocidade comportamental, o que só é possível porque os chimpanzés são capazes de ‘ler’ estados mentais uns dos outros, e dessa forma interpretar intenções e antecipar respostas comportamentais de seus pares (assim como acontece com os humanos). Todos os demais grandes antropóides – gorilas, orangotangos e bonobos – são também dotados de faculdades mentais sofisticadas. No Japão observam-se corvos que juntam castanhas sobre a faixa de pedestres, para que os pneus dos automóveis as esmaguem, e aguardam o sinal fechar para buscar as castanhas partidas, que eles jamais seriam capazes de quebrar com o próprio bico. Outros corvídeos se servem de gravetos maleáveis para fabricar ganchos, com os quais alcançam larvas no interior de troncos. Golfinhos brincam com argolas de bolhas de ar que eles criam sob a água, e até mesmo polvos brincam com jatos de água. Golfinhos, chimpanzés, orangotangos e elefantes reconhecem a própria imagem refletida em um espelho, o que sugere que esses animais possuem alguma consciência individual. E a lista de animais cognitivamente complexos aumenta a cada dia que passa, abarcando papagaios, cães, porcos, hipopótamos.

Ora, por que seria de outro jeito? Se os chimpanzés (Pan troglodytes) e bonobos (Pan paniscus) são nossos parentes mais próximos vivos, não seria mesmo de se esperar que essa semelhança fosse visível também na dimensão comportamental, e não apenas no nível físico? Se, por um lado, é uma verdade óbvia que o cérebro humano é muito maior que o desses animais, por outro lado é também um fato científico que as estruturas cerebrais deles e dos humanos são basicamente as mesmas, e que nós, humanos, partilhamos com esses animais um sistema nervoso muito semelhante. Hoje em dia não mais constitui ‘heresia’ científica falar de inteligência animal ou emoções animais. Assim como nós, muitos animais – segundo as particularidades de estilo de vida, aparato sensorial e grau de desenvolvimento mental – são capazes de sentir medo, raiva, ciúmes, desamparo. Além disso, a origem comum dos sistemas nervosos humanos e animais tem outra implicação eticamente relevante: a questão da dor.

No século XVII o filósofo René Descartes afirmou que os animais eram meros autômatos orgânicos desprovidos de alma, e cujos gritos apenas pareciam indicar dor, sendo na verdade meras expressões de reflexos físicos, em contraste absoluto com o homem, dotado de uma alma imortal e uma mente racional. Nascia, assim, uma doutrina que vicejaria com grande vigor no pensamento ocidental, com conseqüências calamitosas para os animais em seu convívio com os humanos. O advento do darwinismo, através da noção de origem comum - hoje amplamente aceita pela comunidade científica - pôs em cheque essa doutrina dualista que isolava o homem do restante do reino animal e do mundo natural, e que servia como uma luva para justificar toda e qualquer forma de exploração dos animais pelos homens. Hoje nenhum cientista que se preze é capaz de admitir publicamente que acredita ainda na ideia cartesiana de que os homens são seres sensíveis e dotados de alma, enquanto os animais seriam meros autômatos. Contudo, tanto entre o público leigo como na comunidade acadêmica não são poucos aqueles que, na prática de sua vida ética e na ética de sua vida prática, ignoram por completo esse dado biológico, e continuam pautando suas condutas baseados em uma visão que inclui na comunidade moral apenas os seres humanos (em muitos casos, nem todos eles!) e considera que todos os animais não-humanos podem ser explorados pelos homens de quaisquer formas que aprouverem a esses últimos.

Desde a Inglaterra vitoriana muitas vozes se levantam contra essa atitude neocartesiana, e o próprio Darwin afirmou que a mais avançada e recente das aquisições morais dos seres humanos seria uma “solidariedade para além dos confins do homem”, que incluisse também os animais não-humanos. Nos dias de hoje os principais defensores dos interesses ou direitos dos animais no meio acadêmico (por exemplo, Peter Singer, Richard Ryder e Tom Regan) recorre justamente à noção darwinista da origem comum para embasar seus argumentos. Pois o darwinismo nos mostra que partilhamos com os outros animais não apenas a sensibilidade à dor física, mas também ao sofrimento emocional. Porque tanto humanos como animais – ao menos aqueles dotados de mente, de capacidade de locomoção e escolha, de emocionalidade, ou, como diria Regan, animais que são ‘sujeitos de uma vida’ – procuram conduzir suas existências de modo a obterem o máximo de prazer e a evitarem ao máximo toda e qualquer dor. Diferenças entre humanos e animais existem, sim, mas em menor quantidade do que se costuma crer, e talvez a mais significativa delas seja o fato de que, dentre todos os animais, aparentemente apenas os humanos constituem-se agentes morais, ou seja, indivíduos capazes de refletir sobre as conseqüências de seu comportamento no que tange aos demais indivíduos. Mas essa diferença apenas reforça a importância de debatermos as fronteiras de nossa comunidade moral, já que tudo indica que somos os únicos animais que formam comunidades morais verdadeiras. Esse debate não é simples ou óbvio, e é por isso que diferentes autores propõem variados critérios e conceitos com base nos quais norteamos essa demarcação do círculo daqueles que importam moralmente. Dependendo dos critérios adotados, diferentes práticas de exploração animal – alimentação carnívora, experimentos fisiológicos, caça, cativeiro em circos ou zoológicos, a indústria de peles – podem ser consideradas aceitáveis com restrições, plenamente admissíveis ou completamente inegociáveis. Mas hoje esse debate é imperativo, e uma coisa é certa: não podemos mais acatar, seja de top models, baleeiros ou mesmo cientistas, o argumento simplório de que ‘eu estou apenas fazendo meu trabalho’.

André Luis de Lima Carvalho – doutorando em História das Ciências, Casa de Oswaldo Cruz (COC) – FIOCRUZ, RJ







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