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ARTIGOS: Evolução




O que Dá pra Rir Dá pra Chorar

A ciência ri ou nos faz rir? As geniais charges publicadas por Sidney Harris falam por si só.

Considero louvável a decisão da Editora da UNESP de publicar sob o título “A Ciência Ri” as geniais charges sobre ciência deste criativo cartunista, nascido em Nova York, que dedica grande parte de seu trabalho a retratar um lado tão pouco explorado da ciência e da tecnologia. São estes diferentes e geniais olhares para e sobre a ciência que nos ajudam a compreender algumas das dimensões estéticas desta atividade - tão tipicamente humana – e que ficam escondidas entre fórmulas matemáticas, testes estatísticos, gráficos, modelos, diagramas e linguagens, às vezes, tão herméticas. Jeitos que a ciência e os cientistas inventaram para divulgar os complexos resultados a que chegam com trabalhos, muitas vezes, extremamente criativos, mas que nos distanciam destas dimensões da ciência que, surpreendentemente para muitos, envolvem o “belo”, o “espanto”, o “drama”, a “surpresa”, a “perplexidade”, a “angústia”, a “comédia”, o “riso”, o “choro”...

Estamos celebrando os duzentos anos do nascimento de Charles Darwin e os 150 anos da publicação do livro “A Origem das Espécies” que provocou grande mudança de paradigma na Biologia e que tem provocado polêmicas e controvérsias no interior da ciência e fora dela, envolvendo instituições relacionadas com as mais diversificadas atividades humanas. Busco em duas práticas sociais centenárias - as charges e as práticas de ensino no contexto escolar – que estão relacionadas com processos de divulgação, entre outras, das idéias científicas, alguns elementos para pensarmos em significados, impactos e impasses construídos por nós em relação ao trabalho de Darwin. Tanto em uma com em outra me parece possível a afirmação: o que dá pra rir dá pra chorar!!!

Vamos às charges. As três primeiras que se seguem entremeadas ao texto foram todas publicadas (veja legenda) enquanto Darwin estava em plena atividade científica, divulgando novas idéias e procurando responder por vários caminhos às críticas e reações provocadas pela publicação de “A Origem das Espécies”.

1. Charge publicada por volta de 1871. Na charge o gorila está apontando para Darwin e dizendo:”Aquele homem está reclamando o meu pedigree. Ele diz que é meu descendente. Mr Bergh (o fundador da Sociedade para Prevenção da Crueldade contra os Animais) pergunta: “E então Mr. Darwin como pode insultá-lo tanto assim? 2. Caricatura de Darwin publicada em 1874 por The London Sketchbook 3. Publicado em Fun, novembro 1872

Teriam essas charges provocado sorrisos ou risos em Darwin?

Muito já se escreveu sobre a vida de Darwin e seus biógrafos parecem ter se dedicado mais a mostrar os “os tormentos” do cientista frente às novidades que ele mesmo estava construindo, que sua capacidade de se divertir com as reações ferrenhas às suas conjecturas. Tudo indica que o longo tempo que Darwin espera para publicar as suas idéias se justifica pelas suas preocupações quanto aos significados que suas idéias teriam para a sociedade inglesa, principalmente junto ao grupo social de onde vinha. Darwin demora cerca de 20 anos para reunir dados criteriosos que dessem sustentação às suas idéias, mas também buscando “coragem” para publicar a sua obra. Darwin sabia que as suas hipóteses afrontariam radicalmente a forma de compreender determinados processos, envolvendo, inclusive, dogmas ferrenhamente defendidos pela Igreja. É praticamente consenso entre os historiadores da ciência que Darwin só não prolongou mais esse tempo, pela concorrência de outro pesquisador (Wallace) que teria chegado a conclusões semelhantes às de Darwin, trilhando outros caminhos de pesquisa. De qualquer forma, o contexto social na Inglaterra contemporânea de Darwin e a própria posição social da qual descendia o cientista em muito explicam as dificuldades, as angústias, dúvidas e, para alguns, verdadeiros tormentos vividos por ele. Olhamos hoje em dia para as charges produzidas na Inglaterra do século XIX e rimos delas. Divertimo-nos com elas e aproveitamos para, muitas vezes, ficarmos perplexos e boquiabertos diante de reações tão irracionais, reacionárias, retrógradas daqueles que procuravam, com sua capacidade de “caricaturar”, rebater e desqualificar idéias que, hoje, fazemos questão de celebrizar. Continuamos a rir daquelas charges e, felizmente, daquelas produzidas pelos cartunistas contemporâneos: agora de um outro lugar, de um outro tempo. Tempos e lugares que supostamente nos colocam em condição de superioridade intelectual e afetiva que nos permitem “comemorar” com a ajuda de Darwin o nosso deslocamento como “seres no centro do universo divino”. A capacidade inventiva de Sidney Harris (o cartunista norte-americano já mencionado), que invertendo a lógica com a qual estamos acostumados, e levando às últimas consequências o pensamento darwiniano, nos coloca questões cruciais sobre a nossa atividade científica e sobre os nossos olhares de suposta superioridade frente à natureza (Fig. 4).

As experiências angustiantes vividas por Darwin parecem ser compartilhadas por muitos outros cientistas, alguns conhecidos e muitos outros por nós desconhecidos, que decidem por caminhos ainda não trilhados, por questões ainda não postas ou por olhares novos a questões já tradicionalmente postas, mas sempre inquietantes. Assim como Bruno Latour, em seu livro “Ciência em Ação”, faz a opção pela “porta da ciência em construção” em seus estudos sobre ciência e tecnologia, preferindo esta à “porta da ciência acabada”, alguns cientistas fazem as suas escolhas quando decidem as suas “entradas” nos diferentes campos da atividade científica. Para Latour a escolha por entrar no mundo da ciência pela porta de trás, ou seja, a da ciência em construção significa abrir mão de entrar pela porta grandiosa da ciência acabada. Podemos escolher uma de duas faces da ciência: uma que sabe e outra que não sabe. Escolher pela segunda é escolher o mundo da controvérsia, da incerteza, da necessidade de decisões sem dados suficientes, da concorrência e de alguns momentos certos de muita angústia. Darwin tinha tudo para entrar pela porta da frente da ciência à sua época: catalogar, descrever, classificar, corroborar, publicar e desfrutar do lugar econômico e socialmente privilegiado que a “natureza divina” havia lhe concedido e que seus trabalhos de cientista rigoroso e perspicaz apenas reforçariam e o coroariam de “glória”.

4. Cartoon, produzido por Sidney Harris, em “HARRIS, S. A Ciência Ri: o melhor de Sidney Harris. São Paulo: Editora da UNESP, 2007” [“Desde que aquele jovem Darwin esteve aqui, a espécie dele certamente evoluiu.”]

Ledo engano o nosso, quando achamos que podemos, hoje, rir confortavelmente das idéias e charges de nossos antepassados do século XIX. Voltemos o nosso olhar para o contexto escolar, seja ele qual for, o do ensino superior ou o da educação básica. Qual o lugar e o espaço ocupado pela “evolução” nos nossos currículos escolares? Embora a famosa frase de Dobzhanski - “nada faz sentido em biologia a não ser à luz da evolução – já tenha sido há muito popularizada, a pergunta continua e nos parece cada vez mais atual: qual o lugar da evolução em nossas atividades de ensino de biologia, em cada um destes diferentes níveis escolares, da escola fundamental ao ensino superior? É a evolução tomada como princípio orientador de nossas práticas escolares no ensino de Biologia? A pergunta torna-se mais significativa quando os nossos olhares se voltam para os diversos cursos de graduação em Ciências Biológicas espalhados pelo Brasil afora: que lugar ocupa a “evolução” nos currículos desses cursos?

Já são muitas as pesquisas que mostram, ainda nos dias de hoje, grandes resistências, de natureza diversa, às abordagens evolutivas nos contextos escolares. Em que medida essas resistências são tão diferentes daquelas mesmas que moveram as críticas dos ingleses oitocentistas às idéias do Darwin? Não precisamos ir longe demais para buscar exemplos de resistência que mais uma vez nos surpreendem! Não há necessidade de nos embrenharmos no interior das pequenas cidades interioranas da grande Amazônia ou do sertão Nordestino para buscarmos posições “pitorescas” em relação às idéias de Darwin. Não é necessário ir longe demais no tempo.

A Revista Ciência Hoje, de outubro de 2004 (v. 35, n. 209) traz uma excelente entrevista com o professor Francisco Salzano, professor emérito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, para debater uma lei estadual aprovada em 2004, no Rio de Janeiro, instituindo o ensino religioso nas escolas, com destaque para o ensino do criacionismo. Na entrevista, a repórter da Ciência Hoje em uma das questões ao Prof. Salzano, apresenta o seguinte fato que reproduzo, ao concluir esse artigo:

“Um dos professores que ensinarão o criacionismo nas escolas do Rio disse à reportagem do jornal ‘O Globo’: “Tenho certeza que minha avó não era macaca”.

E então, rir ou chorar?

Busco, na sabedoria dos sambistas brasileiros, desta feita representados por Billy Branco, uma possível resposta à questão:

[...] O que dá pra rir, dá pra chorar
Questão só de peso e medida
Problema de hora
E lugar
Mas tudo são coisas da vida
O que dá pra rir, dá pra chorar
O que dá pra rir, dá pra chorar.

Fontes: 1. http://www.guardian.co.uk/science/2008/feb/09/darwin.websites; Acesso em 24/10/2009
2. http://www.educacional.com.br/reportagens/Darwin/criticas.asp; Acesso em 24/10/2009
3. http://www.educacional.com.br/reportagens/Darwin/criticas.asp; Acesso em 24/10/2009
4. http://www.cartoonstock.com/directory/C/Charles_Darwin.asp; Acesso em 24/10/2009

Luiz Marcelo de Carvalho – Depto. de Educação, Instituto de Biociências, UNESP – Rio Claro







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