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ARTIGOS: Microrganismos, biodiversidade, pesquisa




Fungos que Devoram Plástico e Homens que Devoram Florestas

A floresta amazônica é reconhecida como lar de uma das maiores (talvez da maior) biodiversidades do mundo. Isso significa que não apenas ela abriga uma quantidade imensa de espécies de seres vivos, mas que também há muito a ser descoberto neste ambiente. Isso se comprovou recentemente com a descoberta do fungo Pestalotiopsis microspora, por um grupo de estudantes da universidade de Yale (EUA) que faziam pesquisas no Equador.

O grupo fazia parte da expedição anual Rainforest Expedition and Laboratory, com o objetivo de "experimentar o questionamento científico de modo compreensivo e criativo". Além da coleta de plantas, fizeram o cultivo de microrganismos associados aos tecidos vegetais coletados. Embora esse não fosse o objetivo principal, a equipe acabou por descobrir uma nova espécie de fungo, capaz de se alimentar de um dos resíduos de maior relevância em problemas ambientais com lixo: o poliuretano.

O poliuretano (ou PU), desenvolvido durante a segunda guerra mundial com o objetivo de substituir a borracha, é proveniente de combustíveis fósseis e tem larga aplicação industrial. O principal produto comercial proveniente do PU são espumas (para revestimento, como em freezers, isolamento térmico e acústico em construções, estofado de móveis domésticos), mas também se incluem vernizes, colas, pneus, colchões, preservativos e artigos de vestimenta. Além disso, diversos processos industriais são dependentes da presença de poliuretano, como na produção de peças técnicas, na indústria siderúrgica e metalúrgica, produção de papel e celulose, mineração e até mesmo na extração de petróleo (em uma plataforma de petróleo podemos chegar a ter mais de 20 toneladas de poliuretano em material diversas aplicações).

A publicação de um artigo pela equipe no periódico Applied and Environmental Microbiology (Microbiologia Ambiental e Aplicada) em 2011 chamou atenção da mídia, que noticiou o acontecido como a iminência da solução de nossos problemas ambientais com lixo de longa durabilidade. Mas essa é uma questão um pouco mais delicada do que parece.

Degradação de plásticos por microrganismos não é novidade na ciência. Já conhecemos centenas deles. O maior problema com este tipo de processo é uma aplicação viável em larga escala. Além disso, fungos seriam microrganismos de difícil controle para a quantidade de lixo a ser degradada, fazendo com que alguns já temam possíveis "vazamentos" que poderiam resultar em perdas catastróficas. Isso já acontece em menor escala em ambientes muito úmidos, como florestas (e nossos banheiros), mas numa velocidade muito baixa. Fungos já causam prejuízo industrial na degradação de plástico e até mesmo vidros.

Mas assim como não faz sentido muita expectativa para solucionar problemas ambientais a curto prazo, também não há nexo numa histeria de pânico sobre uma possível praga urbana comedora de plásticos. Anos de pesquisa se fazem necessários nesses casos, que envolvem desde melhoramento genético das espécies até o isolamento das substâncias envolvidas no processo de degradação.

A descoberta possui um valor, contudo, que vem sendo pouco explorado: um alerta, de urgência, para dois problemas sérios no mundo e mais ainda no Brasil.

O primeiro é o pouco investimento nas chamadas pesquisas de base, também chamada de "ciência pura". Neste campo, se englobam todos os estudos sem aplicação comercial direta, levantamentos e classificações que poderão trazer dados relevantes para a indústria (ou não). Quase todos os trabalhos voltados à preservação ambiental encontram-se neste grupo. Mas ainda é um pensamento antigo acreditar que se deva investir menos em pesquisas de base quando é delas que surge a maioria das novas ideias e soluções para problemas que, muitas vezes, a própria ciência aplicada cria. Foi necessário que uma expedição americana visitasse o ambiente amazônico e descobrisse este fungo quase "sem querer" para que nós prestássemos mais atenção nos potenciais da biodiversidade desta região. E ainda assim, pouca atenção.

Mais da metade da floresta amazônica está em solo nacional (seguido pelo Peru, com apenas 13%). Ainda assim, nossos pesquisadores precisam competir por cerca de 1% do PIB nacional que é destinado a estes estudos (no geral, não só na Amazônia). Alguns estados das regiões Sul e Sudeste contam com outras fontes significativas de recursos para a pesquisa (A FAPESP, por exemplo), mas este não é o caso das regiões brasileiras que abrigam a floresta amazônica. Se as razões são mais econômicas ou culturais, neste momento é irrelevante. O fato é que o investimento é muito baixo, ao menos se pretendemos nos inserir no cenário de desenvolvimento científico e tecnológico mundial.

O segundo problema é ainda mais complexo. Somos um país de destaque em biodiversidade e recursos hídricos. Abrigamos a maior parte da Amazônia, e isso tem despertado olhares do mundo todo. No entanto, o desmatamento amazônico até o ano 2000 já era próximo dos 600 mil km2 (uma área mais de seis vezes maior que a área total de Portugal). Entre 1990 e 2003, a taxa de desmatamento apenas cresceu, e em 2008 o governo brasileiro anunciou que a taxa havia voltado a subir.

As razões são muitas. Analisando cruamente, cerca de 70% da área anteriormente coberta por florestas (91% da área desmatada) é destinada à pastagem. Ainda, o Brasil já é o segundo maior produtor de soja do mundo.

Muito desse impacto é devido a problemas de planejamento interno e exploração exagerada de recursos, a ver pelas recentes propostas de alterações no código florestal, visando favorecer grandes produtores e exploração desses ambientes. Mas não se pode negar que grande parte desse processo é reflexo de pressões comerciais externas.

O buraco é muito mais embaixo, mas serve para nos colocar a pensar. De um lado, microrganismos "devoradores de plástico" escondidos em ambientes intocados estão esperando para serem mais bem conhecidos, estudados e possivelmente virem a render pesquisas que poderão auxiliar o ser humano na mitigação e reparo de seus impactos ambientais. Mas do outro lado estamos nós, pesquisadores ou não, que não podemos nos permitir descansar as consciências na esperança de que este fungo resolva nossos futuros problemas ambientais enquanto continuamos a "devorar florestas".

As políticas de conservação e o investimento em pesquisa científica devem ser aliados do nosso desenvolvimento, não inimigos. E só assim poderemos reduzir nossa produção de lixo enquanto as pesquisas caminham para possíveis soluções.

André Estevam, Jornal Biosferas







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