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ED. ESPECIAL 2012: A Biologia como Ciência e a Biologia como Profissão




"Era uma vez..." a Biologia-A biologia como ciência só faz sentido à luz da história

A história das ciências ainda é pouco reconhecida no Brasil, ou pelo menos tratada como secundária no rol de temáticas oferecidas pelo ambiente acadêmico científico. Todo dia descobertas científicas e tecnológicas surgem, e a demanda por conhecimentos cada vez mais específicos aumenta. Dentro desse contexto e partindo de uma visão utilitarista, entender a história das ciências parece ser um gasto de energia desnecessário e de pouca relevância. Tal fato provavelmente decorre do hábito arraigado de se estudar apenas os métodos e as técnicas e não o processo pelo qual se dá o desenvolvimento do pensamento científico. Esquece-se o valor da história como uma importante fonte de informações propulsoras de novos insights e diferentes perspectivas. No entanto, é justamente pelo entendimento do processo histórico de construção das ciências que se pode construir uma visão crítica e não utópica dessa atividade.

Ao se valorizar o componente histórico, torna-se muito mais simples desmistificar as teorias científicas enquanto verdades absolutas, permitindo eliminar a visão ludibriante e estereotipada de que a ciência é sempre feita do sucesso de gênios versus o fracasso de medíocres. Essa visão, presente em todas as áreas de pesquisa, encontra eco também na biologia, na qual são relatados inúmeros casos de pseudo-rivalidades intelectuais que terminaram com a vitória incontestável de um lado e a derrota humilhante do outro (de um lado, Charles Darwin e sua teoria da evolução a partir do mecanismo da seleção natural, do outro, Jean Baptiste Lamarck e sua proposta baseada na errônea hereditariedade tênue e no uso-e-desuso). Somente através do conhecimento histórico é que se pode compreender a ciência como um processo de refinamento constante de ideias que busca, a todo custo, aproximar-se de uma verdade inalcançável.

Como justificar, então, a necessidade de se estudar história das ciências? Jane Maienschein, especialista em filosofia da biologia e professora da Arizona State University, diz que a perspectiva histórica mostra a força e o entusiasmo da ciência e pode ajudar a explicar porque algumas práticas funcionam ou são mais aceitas que outras. Assim como os especialistas em biodiversidade estudam a importância histórica da evolução dos ecossistemas, os biogeógrafos procuram entender os processos de vicariância e dispersão ocorridos desde milhões de anos atrás e os geneticistas analisam o processo que leva ao desenvolvimento do indivíduo no tempo, os bons pesquisadores deveriam ter conhecimento da história das suas áreas, à medida que ela mostra os erros cometidos anteriormente, evitando que sejam reprisados e abrindo caminho para novos erros, a partir dos quais o conhecimento pode avançar. Maienschein compila cinco razões tradicionalmente aceitas para se estudar a história das ciências. A primeira seria o auto-aperfeiçoamento: a história nos torna melhores cientistas, menos arrogantes e mais conscientes do valor e da finalidade das nossas atividades.

A segunda razão diz respeito ao que o biólogo evolucionista Ernst Mayr chamou de eficiência na pesquisa. A história revela os vários equívocos e desvios de rota, possibilitando, dessa maneira, um aperfeiçoamento do processo de desenvolvimento científico na atualidade, uma vez que o progresso científico se dá pelo entendimento do passado (a fim de nos esquivarmos dos erros pretéritos, como dito acima) e o olhar adiante. Particularmente na biologia, o estudo histórico é imprescindível para a prospecção de novas pesquisas e áreas de investigação. Pensando na teoria da evolução, como utilizar conceitos que ao longo dos séculos receberam diferentes definições e que hoje se confundem com significados diferentes? Um exemplo disso é a associação quase imediata que muitos fazem entre epigenética e lamarckismo. A epigenética estuda a importância de mecanismos não-genéticos na expressão de características fenotípicas (tais como metilação do DNA). Essa variação de origem epigenética independe de quaisquer modificações nas sequencias do material genético das células. É possível que mudanças ambientais levem a alterações na expressão de atributos dos organismos os quais, por sua vez, estariam suscetíveis aos mecanismos de fixação (tais como a seleção e a deriva genética) e seriam transmitidos aos descendentes. Em linhas gerais, estamos falando de variabilidade surgindo não através de modificações dos genes e sim de mecanismos desvinculados aos genes. Era o que Lamarck dizia, podem clamar alguns. Isso revela o desconhecimento da história e do contexto das descobertas científicas: o que ficou conhecido como lamarckismo foi uma exacerbação da teoria da transmissão dos caracteres adquiridos já discutida desde Aristóteles e pensada por Lamarck no contexto do princípio da plenitude do filósofo alemão Whilhelm von Leibiniz, para quem tudo no mundo existia em total harmonia. Para Lamarck, que tinha evidências da ocorrência de extinções no passado pelo fato de ter analisado fósseis de invertebrados no Museu de História Natural da França, a única maneira de explicar como a criação poderia se coadunar à plenitude leibniziana (Deus não poderia exterminar sua criação em um mundo harmônico!) seria preconizando que os organismos não se extinguiam e sim mudavam com o passar do tempo. A mudança, ou seja, a evolução, aconteceria por conta do uso contínuo ou pouca utilização de estruturas do corpo, que seriam repassadas aos descendentes modificadas. Mesmo um quadro rápido como o apresentado aqui demonstra que epigenética não tem o mesmo arcabouço conceitual do lamarckismo e que é falacioso dizermos que o fantasma de Lamarck voltou para atormentar os evolucionistas contemporâneos.

O terceiro e quarto argumentos a favor do estudo da história das ciências se complementam, pois tratam da perspectiva que ela fornece aos cientistas, tornando-os mais críticos em relação às suas próprias pesquisas e aos trabalhos dos colegas, e das possibilidades que a história traz à ciência, abrindo o leque de ideias, expandindo a visão e estimulando o raciocínio. Trata-se, em suma, do incentivo ao uso da "imaginação".

Por fim, a quinta razão diz respeito à educação e à compreensão pública. O entendimento do que é ciência, como ela funciona e como torná-la melhor é consideravelmente aumentado com a ajuda da perspectiva histórica. A biologia é tão ramificada, são tantas as sub-áreas com objetos de estudo distintos e seus respectivos métodos de investigação cada vez mais demarcados, que apenas colocando-as num contexto histórico e mostrando como cada um desses campos mudou no tempo é que se pode obter ao menos um esboço do cenário mais amplo.

Infelizmente, a fragmentação do conhecimento na contemporaneidade chega a tal ponto em que não se questionam mais o porquê da utilização dos modelos atuais de pesquisa, nem quais foram os caminhos que o conhecimento percorreu até chegar ao que é aceito atualmente – para uma ampla fatia de pesquisadores e aspirantes a cientistas, parece bastar saber quais são as técnicas, quais botões devem ser pressionados e como escrever o artigo que será submetido à publicação. É preciso ressaltar a todo momento que o estudo de episódios históricos com o uso de textos originais pode colaborar para uma compreensão orgânica das ciências, em particular da biologia. Isso vale não apenas para quem está nas bancadas dos laboratórios. A educação e divulgação científica para um público amplo é fundamental tanto para quebrar superstições quanto para desfazer a visão de que a ciência é "perfeita", que os cientistas são geniais pensadores que descobrem extraordinários novos conceitos em um momento de "Eureka!" enquanto submersos em suas banheiras. É preciso mostrar que o conhecimento científico é feito de muitos erros e alguns acertos. O que diferencia essa de outras formas de conhecimento humano é que os erros e os acertos da ciência são baseados em evidências testáveis. O pensamento evolutivo moderno deve muito a autores como Pierre Louis Maupertuis, Conde de Buffon, Lamarck, Leopold von Buch, Alfred Wallace e também a muitos outros que desenvolveram as ideias darwinianas iniciais, ajudando a moldar o que conhecemos hoje como teoria da evolução: August Weissman, Ernst Mayr, Theodosius Dobzhansky, James Watson, Francis Crick, Alfred Wegener, Willi Hennig, León Croizat, Stephen Jay Gould, Richard Dawkins, Moto Kimura, Conrad Waddington e uma série de outras figuras proeminentes nas ciências naturais nos século XX e começo do XXI. Tida como o princípio unificador da biologia, a teoria da evolução quase sempre é considerada pela grande mídia ou pelos livros didáticos como o produto da mente brilhante de Darwin, desconsiderando todos os seus inúmeros predecessores e as influências que construíram o arcabouço que tornou possível a delimitação desse programa de pesquisa tão abrangente.

As cinco razões discutidas aqui nos dão indícios do valor da história no desenvolvimento do pensamento científico e na construção de um espírito crítico e não tendencioso. Humanizar a ciência não implica reduzir o seu valor ou a sua importância. Vista à luz da história evolutiva, a biologia é intelectualmente satisfatória e inspiradora; sem essa luz, torna-se apenas uma pilha de fatos diversos, alguns interessantes ou curiosos, mas que não fazem uma descrição significativa do todo. O mesmo raciocínio vale para a ciência: sem conhecermos a beleza e as dificuldades da sua construção, ela se torna apenas um conjunto de explicações descontextualizadas, muito longe de provocar qualquer sentido de maravilhamento nas nossas mentes e corações.

Bruna Klassa e Charles Morphy D. Santos, CCNH - UFABC







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