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ED. ESPECIAL 2012: A Biologia como Ciência e a Biologia como Profissão




As Inverdades Convenientes-Uma ciência que mente, mas se desmente

Ao longo da história da humanidade, a ciência tem se solidificado como principal referência para o conhecimento e compreensão da realidade. Sabemos que não foi sempre assim. E para muitos, talvez ainda não seja. Mas ao menos enquanto cientistas ou entusiastas da ciência podemos rir dos próprios erros, aprender com eles, e tornar nossos campos de pesquisa mais sólidos com o passar do tempo.

Já parou para pensar que boa parte do conteúdo que você aprendeu nas aulas de ciência pode estar errada? Errada, talvez, seja uma palavra forte. Mas os equívocos são presentes na pesquisa científica desde seu início e, embora o ideal seja evitá-los, não são de todo condenáveis. Um coisa que temos aprendido é a olhar para trás antes de afirmar qualquer verdade científica. Por isso é que os cientistas começam seus trabalhos com o que chamamos "revisão bibliográfica", ou seja, uma busca do que já foi estudado sobre aquele assunto, tentando verificar o que já foi descoberto, encoberto e até mal interpretado.

O italiano Marcello Malpighi, por exemplo, mesmo sendo um dos biólogos mais importantes para a fisiologia comparada e microanatomia, chegou a confundir muitos amigos cientistas ao afirmar ter encontrado um pintinho nascido de um ovo não fecundado. Não muito tempo antes, Paracelso, maior médico do século XVI, chegou a escrever a "fórmula" para geração espontânea do homem, deixando apodrecer sêmen por 4 dias.

Nosso modo de reprodução é bastante claro para a maioria das pessoas, pois já no início da vida estudantil aprendemos que os espermatozoides são produzidos nos testículos e os óvulos nos ovários. Mas no século XVIII, apenas 100 anos depois da descoberta dos espermatozoides, George-Louis Leclerc (conde de Buffon), uma das maiores influências de Charles Darwin, chegou a afirmar que os espermatozoides eram produzidos por ovários, após encontrar esperma em uma cadela.

Entre fósseis de ictiossauro usados como evidência para o "Grande Dilúvio" bíblico e a teoria de Lamarck que afirmava que se retirássemos um olho de dois animais recém-nascidos e os cruzássemos, surgiria uma nova raça de um olho só, a ciência já deu muitos tiros no escuro – e errou! No século XIX, Theodor Schwann, cofundador da teoria celular, afirmou que a célula, unidade fundamental da vida, era oca. Hoje diversos componentes internos da célula já compõem um campo de estudo próprio.

Outros casos interessantes envolvem até mesmo a mídia científica. Entre os casos mais famosos, uma pesquisa feita em Harvard relacionando o uso de água clorada com câncer de bexiga e do reto, e outro da universidade Hebrew (Jerusalém) estabelecendo conexões entre luzes fluorescentes e leucemia infantil, foram ambos negados por algumas das revistas mais importantes de suas áreas porque poderiam provocar pânico na população, causando problemas a seus governantes.

Aumentando a polêmica para além dos "equívocos" e ocultações, documentos de Pasteur divulgados cerca de 100 anos após sua morte comprovaram métodos de pesquisa antiéticos, apropriação de metodologia de outro cientista sem os devidos créditos e até mesmo aplicação de vacinas em seres humanos antes de serem testadas em animais. Isso sem falar das diversas experiências eugenistas, em sua maioria por parte de americanos e alemães, realizadas próximas do período do nazismo alemão.

Os casos são muitos. Aqui mesmo no Brasil, o médico Raimundo Nina Rodrigues, um dos nomes mais importantes para o avanço da medicina legal em nosso país, influenciado pelo modo de pensar europeu acabou afirmando inverdades sobre a criminalidade no país. Após a abolição da escravatura, a partir de estudos anatômicos (principalmente faciais e cranianos) de criminosos, chegou a afirmar que a raça negra teria predisposição a condutas ilegais. Entre suas publicações está "A igualdade é falsa, a igualdade só existe nas mãos dos juristas", da mesma época em que afirmou que deveria haver códigos penais diferentes para raça diferentes. Anos depois, em 1899, publicou "Mestiçagem, Degenerescência e Crime", que junto a outras obras era usado para sustentar suas ideias de que negros e mestiços eram um dos motivos da inferioridade do Brasil.

Nina Rodrigues só não levou em conta o fato de a maioria dos criminosos da época serem escravos recém-libertos, que por sua condição eram negros ou mestiços, e não encontravam nenhuma forma de trabalho ou caminho de ascensão social.

Pois é, como se pode ver, nem tudo é tão engraçado assim nos erros científicos. Do mesmo modo que alguns deles são motivados e sustentados pelo pensamento de seu tempo (e junto dele, todos os preconceitos e paradigmas filosóficos), também podem acabar sustentando esse pensamento. Não se pode descartar, contudo, que antes de Nina Rodrigues nenhum outro pesquisador havia iniciado estudos sobre a cultura negra. Ainda que sob a ótica da inferioridade cultural, a obra "Os Negros no Brasil" foi a primeira brasileira a incluir estudos étnicos de suas religiões, línguas e folclore.

Pensando em um caso mais contemporâneo, a ideia do "gene egoísta", proposta por Richard Dawkins, não causou tata polêmica ao encontrar a opinião pública. Valores de "herança" e "destino" estão enraizados em nossa cultura no mínimo desde o período medieval, sobretudo por influência do cristianismo. Quando a verdade científica não se choca com a moral estabelecida, pode ser que a aceitação seja rápida e o questionamento seja pouco. E nesse caso foi tão pouco que ocorreu sem chamar atenção, sendo discutido em um capítulo inserido apenas na edição mais recente, que provavelmente só chegou ao conhecimento de fãs de Dawkins e estudantes do gênero.

Devemos ter cuidado com a verdade científica, pois ela sempre estará submetida à pesquisa do próximo cientista. E a história da ciência é uma história de quebra de paradigmas, desde muito antes de a Terra ser concebida como parte de um universo, e que possivelmente vai até muito depois de pensarmos a vida ser exclusividade em nosso planeta.

A notícia boa é que isso não deve ser motivo de vergonha. Pelo contrário, aprender com os erros deve ser visto com orgulho, ao menos pelos cientistas que se dedicam eticamente ao seu trabalho. E nesse momento esbarramos num outro ponto fundamental: o ensino e a aprendizagem de ciências. A cada dia é maior o conteúdo científico sobre os diversos mistérios da natureza. E a partir desses registros, novos cientistas darão continuidade a esse trabalho, aparando as rebarbas, acrescentando novas partes, ou por vezes destruindo por completo uma obra.

A história da ciência não é diferente da história do homem, porque é feita por ele. E se por um lado ela exige constante atenção e reflexão, por outro também parece estar amadurecendo com a idade.

André Estevam, Jornal Biosferas, UNESP Rio Claro







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