Jornal Biosferas

Brand


ED. ESPECIAL 2012: A Biologia como Ciência e a Biologia como Profissão




Ciência Pura e Ciência Aplicada-A dicotomia entre pesquisa básica e pesquisa aplicada no cenário do desenvolvimento científico, tecnológico e econômico

Os primeiros primatas com características humanas surgiram há cerca de seis milhões de anos. Durante o processo de evolução cognitiva, científica, artística e cultural desenvolvemos novas ferramentas criativas para nos auxiliar na resolução dos problemas do dia a dia, originalmente restritos à caça, coleta e à constante luta pela sobrevivência em um ambiente por vezes hostil. Essas ferramentas ampliaram nossos horizontes e a maneira com que passamos a interagir e modificar o mundo natural.

O desenvolvimento da linguagem e da escrita foram cruciais para o surgimento da inovação cultural e tecnológica. Podemos considerar o surgimento da linguagem como o ponto de partida para o início da ciência, visto que a comunicação sem linguagem é comum entre outros organismos da Terra, os quais não possuem o raciocínio simbólico com o do Homo sapiens. No início, a protociência ainda era repleta de mitos e deuses, e os fenômenos naturais, distantes do entendimento humano. Foi apenas com o desencadeamento do processo de desmistificação do cosmo, a partir do século VI a.C. pelos filósofos da Grécia antiga, que a pesquisa científica informal pôde ser iniciada. Os pensadores gregos foram os primeiros a confrontar as tradições cosmogônicas, gerando uma nova perspectiva de olhar o mundo: a crítica. Desta forma tudo passou a ser questionado. Tal revolução filosófica abriu campo para o avanço da ciência até os dias atuais.

Além de desenvolver uma argumentação lógica que marcou profundamente o conhecimento humano, Aristóteles (384-322 a.C.) foi também pioneiro ao abordar os conceitos de pesquisa de base e aplicada (conhecimento científico e técnica, respectivamente). Para ele, o conhecimento científico (epistéme) é a última etapa do conhecimento real de conceitos e princípios das leis da natureza ou do cosmo. Seu grau de superioridade em relação à técnica é caracterizado pela junção do saber teórico, contemplativo, com a generalidade. A técnica, como pesquisa aplicada, visa um fim específico, prático. Já o saber teórico deve ser inteiramente livre, gratuito e sem fins imediatos. Em sua concepção grega, Pitágoras afirma que o saber teórico deve ser desvinculado da prática e ter caráter independente. Posteriormente, no início do período moderno (séculos XVI-XVII d.C.), com pensadores como Francis Bacon e Galileu Galilei, a ciência pura e a técnica foram estimuladas a interagir uma com a outra, sendo a própria técnica uma aplicação prática do conhecimento científico.

Em meados do século XIX, quando a metodologia científica se consolidou como um processo sistemático, as pesquisas passaram a ser classificadas de acordo com seus objetos de estudo, suas motivações, finalidades, graus de precisão e métodos empregados. Contudo, tais classificações só existem por uma questão de sistematização e não por independência de suas partes. Dividir a ciência em aplicada ou de base envolve conhecer a motivação e finalidade dos estudos científicos. Por convenção, chamamos de ciência pura, fundamental ou básica, aquela que tem por objetivo o conhecimento em si à parte da sua utilidade. Ela procura descrever elementos básicos da natureza, tais como a estrutura das partículas fundamentais e as leis que as governam. Tem como objetivo gerar conhecimentos novos e busca a compreensão completa sobre o(s) objeto(s) em estudo, constituindo, dessa forma, o "coração" de todas as descobertas. A ciência aplicada estuda formas de utilizar tais conhecimentos em benefício do homem, para a solução de problemas práticos, visando uma utilidade econômica social ou o desenvolvimento tecnológico. Enquanto a ciência de base produz o conhecimento novo, a ciência aplicada o reinterpreta.

Parece claro que sem a pesquisia pura, não haveria conhecimento a ser reinterpretado. No início do século XX, Einstein desenvolveu o conceito de emissão estimulada relacionado com propriedades intrínsecas da matéria, algo fundamental para a física quântica que nascia. Décadas depois foi desenvolvido o laser (sigla em inglês para amplificação de luz por emissão estimulada de radiação), baseado nesse conceito einsteniano. Atualmente lasers específicos são empregados da medicina à metalurgia, passando por telecomunicações e eletrônica de consumo. Há inúmeros outros exemplos da importância dessa dualidade ciência pura versus aplicada, notadamente na biologia. O Jornal do Commercio de Lisboa, de 1886, traz casos curiosos: a perfuração e construção de um túnel sob o leito do rio Tâmisa só teve sucesso a partir das observações de um molusco bivalve (o Teredo navalis) que forma tubos calcários e perfura a madeira dos navios; a partir de relatos do engenheiro francês Frédéric Sauvage sobre um peixe que nadava dentro de uma redoma com o auxílio dos movimentos helicoidais da cauda foi desenvolvida a hélice dos navios. Outro importante exemplo da aplicação e transformação de conhecimentos básicos em tecnologia é o biomimetismo, subárea das ciências biológicas que estuda os princípios básicos da natureza e a sua aplicação na busca de soluções para diferentes problemas humanos. Trata-se da observação e replicação dos sistemas biológicos em inovações tecnológicas, tais como o voo e a aerodinâmica (a partir da observação e estudo biomecânico de aves), o sonar (pelo estudo da ecolocalização de morcegos e cetáceos) e os sistemas de ventilação (inspiração no padrão do sistema de construção de galerias e cupinzeiros por cupins).

Mesmo que a pesquisa de base não dê nenhuma perspectiva de utilidade a curto e médio prazo ela não pode ser considerada dispensável. Além do conhecimento per se, pode haver alguma aplicação que simplesmente não estava prevista. Ninguém que viveu no primeiro quarto do século XX poderia imaginar que estudos aparentemente tão distantes da realidade, sobre espectros de corpo-negro, efeito fotoelétrico, espectros de emissão e absorção atômicos, formariam a base de uma teoria que seria responsável direta pelo futuro desenvolvimento não só do laser, mas também de aparelhos de televisão, computadores e uma enorme quantidade de outras maravilhas eletrônicas que fazem parte de nosso cotidiano.

Mesmo a ciência aplicada também pode originar novos questionamentos de caráter fundamental. Muitas das observações experimentais feitas no século XIX ligadas a problemas tecnológicos como o controle da temperatura de fornos metalúrgicos não puderam ser entendidas a contento com base no referencial teórico disponível para a física da época. Os espectros de emissão térmica de corpos negros só puderam ser descritos com a introdução do conceito de quantização de energia. A motivação de Planck para seus trabalhos sobre a radiação de corpo negro é um bom exemplo de como a ciência aplicada pode levar a descobertas na ciência pura, o que só reforça a hipótese de que a distinção entre as duas é inexata, absurda e artificial.

Muitas pessoas, incluindo políticos, jornalistas e até cientistas, acreditam que os incentivos à ciência básica devam ser minimizados, pois sua aplicabilidade econômica não pode ser mensurada com um grau de certeza confiável. Além disso, essas pesquisas podem ter custos relativamente mais altos e prazos mais longos quando comparados aos da ciência aplicada. Essa é uma visão tacanha e instrumentalista, que infelizmente perpassa grande parte das decisões relacionadas a políticas científicas nos órgãos superiores nacionais (basta lembrar que o Ministério da Ciência e Tecnologia teve um corte de 22% no seu orçamento para 2012, que agora gira em torno de 5,2 bilhões de reais).

De acordo com John Ziman em seu livro "A Força do Conhecimento", a função social da pesquisa básica pode ser encarada sob três pontos de vista distintos. O primeiro refere-se à sua constituição como suporte da pesquisa aplicada, mesmo que a longo prazo. O segundo ponto identifica a ciência pura com uma necessidade estética e espiritual da humanidade, como ocorre com qualquer manifestação artística. Os avanços gerados pela pesquisa de base se fazem mais importantes até do que benefícios materiais, já que, por lidarem com questões que intrigam a humanidade desde tempos imemoriais, podem nos conscientizar de nosso papel no universo. O terceiro ponto de vista relaciona-se com a visão político-pragmática da importância da educação (no sentido amplo) e melhorias na qualidade de ensino. A educação desvinculada da geração de conhecimento básico leva inevitavelmente a uma queda na qualidade do ensino.

Nenhuma sociedade moderna tornou-se desenvolvida sem investimento em ciência básica. Nesse sentido, um país como o Brasil deve recorrer a um projeto de desenvolvimento a curto, médio e longo prazos. A dificuldade em sua viabilização é uma limitação das ciências econômicas e não da ciência pura. A discussão sobre a necessidade de se financiar pesquisas de base não pode estar somente vinculada ao avanço da economia ou aos valores do Produto Interno Bruto. É certo que o Brasil precisa de engenheiros, uma vez que formamos menos desses profissionais do que países com PIBs menores do que o nosso, mas priorizar a pesquisa aplicada e a formação de profissionais que tenham esse viés remete a um pensamento imediatista e incoerente. Acabar com as pesquisas de base é destruir o impulso para a inovação. Tal postura adotada por algumas nações como os EUA é duramente criticada e combatida por personalidades importantes da comunidade científica, como o biólogo e neurocientista Martin Chalfie (laureado com o prêmio Nobel de Química em 2008 pela descoberta e desenvolvimento da proteína fluorescente verde, que exibe um brilho dessa cor quando exposta à luz ultravioleta). Chalfie ressalta que a pressão para que se anuncie a utilidade de todo e qualquer experimento científico bloqueia possibilidades de financiamento para as pesquisas básicas, que são fonte de conhecimento gerado a partir da natureza e responsáveis pelo arcabouço conceitual das pesquisas aplicadas.

De acordo com Carlos Henrique de Brito Cruz, Diretor Científico da FAPESP e um dos palestrantes na 4ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI), realizada em maio de 2010 em Brasília, o mundo vive um momento utilitarista e há uma enorme tendência de se privilegiar a liberação de verbas para pesquisas que possam tornar as empresas mais competitivas ou gerar curas imediatas e tratamentos para doenças. Dada a sua posição proeminente como diretor da principal agência de fomento à pesquisa do Brasil, Brito Cruz reconhece que também é preciso valorizar a ciência que tem simplesmente a função de tornar a humanidade mais sábia. Para ele, "Não se pode privilegiar uma vertente. É preciso ter as duas coisas. (...) A ciência básica, por não ser utilitarista, eventualmente pode precisar de prazos mais longos, especialmente em certas áreas. Se o Brasil quer ter uma ciência competitiva, as instituições precisam dar ao pesquisador apoio semelhante ao oferecido pelos concorrentes".

Tanto a pesquisa básica, como geradora de conhecimento, quanto a aplicada, como reinterpretação desse conhecimento, são igualmente importantes e necessárias para o desenvolvimento científico-tecnológico-cultural. A ciência é a liberdade de pensamento, não tem limites e por isso a necessidade do conhecimento em si é natural à concepção de vida do Homo sapiens. Ela é fruto da observação, da indagação e do esforço. É a relação do homem com o mundo, consigo próprio e com o cosmo. As verdades da ciência são transientes. Não há como dominar em um laboratório todas as variáveis das equações da natureza como em um tabuleiro de xadrez e essa impossibilidade precisa ser considerada como parte do jogo científico. A economia de mercado, ao ignorar tais características intrínsecas da prática das ciências e exigir lucratividade a qualquer preço, apenas emperra o avanço do conhecimento humano.

Stephanie Sampronha, Fernando Z. Gibran, Charles M. D. Santos, CCNH - UFABC







Nos encontre nas redes sociais: